Povoada como sou de várias de mim, me surpreendo ao me ver cantar em uns cantos, colorir outros e descolorir alguns. Limpar os trilhos aqui, entulhar canteiros ali... Numas vezes planto flores, noutras colho espinhos... Perfumes se misturam no ar... Sinto meus cheiros! Costumam ser bons, mas nem sempre.
Enquanto vou andando e me infiltrando num mundo que só cabe em mim e em mais ninguém, me surpreendo ao notar quantas se recolhem por aqui. Quantas coloridas me habitam! Ou será que se escondem em mim? Talvez me invadam...
Em algum lugar que não reconheço posso ouvir, ao longe, uma mulher chorando e gritando. Não a vejo, nem me encontro nela... estranho!
Por que ela chora e grita tanto? Sinto falta de ar ao ouvir seus gritos distantes, como que em outra dimensão. Talvez por isso não consiga entender... Será por isso? Por que não a reconheço... quem pode ser?
Ela grita dor. Grita como quem teve sua luz arrancada, sua primavera despetalada e não mais pudesse florir.
Se a ouço quando me visito, não pode estar tão longe... tem que estar em mim! Continuo perambulando por minhas esquinas. Vejo velhas sapatilhas de bailarina com o cetim carcomido... Vejo sangue escorrendo de cantos impuros e vejo lágrimas se misturando à sujeira... Procuro e a sinto, mas não como uma de minhas flores...
"Apareça, pequena! Deixe pra traz a dor!" Peço gentilmente em pensamento - se a escuto é provável que ela também me ouça. Não quero que me diga porque chora, nem que mal lhe fizeram. Me anseia seu sorriso, sua leveza... Quero abrir-lhe os olhos. Sinto que as lágrimas lhe embaçam a magia diária do sol indo e vindo... as cores mágicas que nos transportam através dos tempos e colocam novas páginas pra nos afastar daquelas poluídas pela dor...
Não consigo entender o que acontece, parece que converso comigo mesma. Vejo-me, entretanto, em espelhos diversos, em formatos variados, alguns nunca vistos, novos... mas essa moça... Ela não é nova, é antiga e não tem meus olhos... é por isso que não entendo, que não a reconheço... É por essa razão que não a vejo. Ela não tem meu rosto e isso me intriga! Ali, onde não me vejo, sinto uma luz roubada. São os gritos que me contam isso.
Quero poder libertá-la, fazê-la enxergar-se e viver seu espelho, olhar-se nos olhos e permitir se desnudar para os olhos hipócritas... Não sei por que ela grita em mim e não em outra pessoa... Suponho que eu possa ajudá-la. Será presunção demais pra uma mulher tão habitada por meninas? Como poderei saber..?
Mesmo sem poder vê-la, sinto a sujeira que lhe escorre pelas pernas... e em meio a tanta dor vejo seu seio carregado, capaz de alimentar todas as crianças que precisam de amor, este que irradia de seu centro.
Como sei que em mim vivem em harmonia e desarmonia tantas mães e filhas, que cuidam de mim e de quem cuido, procuro encontrá-la, desejo encontrá-la, limpar-lhe os olhos como faria a uma filha e vestir-lhe com algo que inspire magia... E ser música para ela dançar. Dançar com as cores que transformam o dia em noite e a noite em dia...
- Dance, pequena, onde quer que esteja! Dance como se suas pernas pudessem transcorrer os tempos e buscar o espaço necessário entre o sorriso reluzente que podem carregar as meninas em seus olhos e o rio que insistentemente lhes tenta afogar...
Sigo entre caminhos através de mim, buscando lugares desconhecidos para desbravar... Ainda não consigo vê-la, mas sinto e como sinto, pego o que acredito ser uma parte do que a faz migalhas e tento levar comigo. Tento aliviar-lhe o fardo. Não sei se consigo, mas se ela me faz sentir, se ela me faz ouvir seus gritos, então minhas mãos e minhas mães podem tocá-la, cuidar dela e tentar escutar agora gargalhadas... Ou graçolejos, ou quem sabe umas cantigas de ninar, calmas como seu coração deseja estar.
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