CANTO E LÁGRIMA: VIDA INTENSA E NÃO REGIDA

"Regida demais, intensa de menos. Lágrimas engolidas pelos cantos da alma que não tem tempo pra sorrir, chorar, sentir. Mãe, irmã, filha, amante, dona de casa, esposa, profissional exemplo..." Relatos das várias mulheres que se escondem dentro de cada mulher, seu mundo, intocável para aqueles que só enxergam com os olhos da carne.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A hora do encantamento

ra quase meia-noite. A lua cheia tomava a cena num céu violeta. Uma mulher caminhava na rua vazia, testemunhava o espetáculo de camarote. Cabelos muito escuros unidos em uma longa trança colada na cabeça. Alguns fios dançando esvoaçantes, fugindo das regras do penteado como ela gostaria de ousar com as regras de sua vidinha correta demais.
                 Um vestido cinza azulado mostrava discretamente as linhas dos seios não tão fartos e marcava-lhe a silhueta de mulher bem feita. Exibia quase metade de suas longas pernas um tanto finas, que terminavam em um salto alto, quase da cor do céu, que lhe cobria os pés e chamava o olhar para seus passos leves, como se flutuasse...     
                 Há tempos que tinha adoração por sapatos e por aquela cor sempre fora fascinada - dos sapatos e do céu, que parecia carregar em sua essência propriedades mágicas. E naquela noite em especial algo aconteceria que a mudaria para sempre.
                 Caminhando distraidamente, o olhar para o alto, começou a perceber as cortinas esvoaçantes, ora translúcidas, ora sombrias, escondendo as cicatrizes meteóricas da protagonista daquele céu.
                 Distraída e encantada como seguia nem notou que o relógio atravessara para o outro dia e continuou andando, agora já sem saber para onde ia. Tropeçou em alguma coisa, quase caiu, mas não... Olhou para os próprios pés e reconheceu neles os sapatos de boneca que lhe foram dados por papai anos antes, no dia em que ele não voltou mais. 
                 Um susto! Que estranho!!! Havia mais um punhado de anos que precisara se desfazer dos adorados sapatinhos vermelhos de tão velhos, já sem cor, abrindo bocas famintas no solado.
                 Seguiu andando até a loja de vestidos onde podia se ver no reflexo da vitrine. Assustou-se ainda mais. Reencontrou-se ali com a menina de 14 anos com o vestido poá que levava um delicado laço vermelho de cetim na cintura. O vestido perfeito para calçar os sapatos de boneca. Cabelos sempre muito negros, todavia neste cenário, livres ao vento como seu coração ainda ingênuo.
                 A sensação de estranhamento tomava conta, só que não tinha medo. Parecia-lhe que atravessara uma linha no espaço-tempo onde podia ser a lua, protagonizando, dançando sozinha na escuridão por detrás das cortinas transparentes de umas nuvens ora lilases ora rosadas como a pele de suas bochechas.
                 De longe se ouvia, de repente, um LP tocando "A Valsinha" do Chico e depois a "Joana Francesa". Olhou para os lados. Não havia ninguém... E se houvesse? Fechou os olhos, abriu os braços e como que tomada pelo cavalheiro se pôs a valsar e depois a girar. Desligada de tudo o mais, testemunhada pela brilhante amiga redonda.
                 Obedeceu ao Chico e abriu os olhos.
                 De novo o reflexo na vitrine, porém não eram mais os sapatos vermelhos nem a fita de cetim. Eram de volta os tons azul-violáceos e as variações de preto e cinza, mas os cabelos... Não havia mais trança, havia longas ondas negras dançando quase no ritmo da música que continuava em outra voz e agora falava da "mesma taça" e da "mesma luz brilhando no champagne" em um café parisiense...
                 Girou mais uma vez, como um pião, sentindo-lhe o vestido subir mostrando os joelhos e um pouco acima. Gargalhou deliciosamente, olhou para o relógio atrás dos vestidos e viu que não era ainda meia-noite. Novamente uma sensação de estranhamento. Deu um suspiro curioso, subiu e baixou os ombros como quem não liga e seguiu a passos rápidos pensando: Teria vivido um momento mágico ou teria sido loucura?


                      

Um comentário:

`´é`´ disse...

muito bonito bailarina do céu!!!